2666 O segredo do mundo*

24 Feb

Comecei a ler a Bolaño em uma tarde de março do ano 2001 em Bogotá, quando minha amiga D. me colocou nas mãos um livro grosso de cor cinza. A imagem da capa era de três homens jovens, usando chapéus e uma roupa elegante, que

Roberto Bolaño

caminham por uma praia de cor vermelha, enquanto no fundo se vê o mar de um azul intenso e uma montanha. Ao colocar o livro em minhas mãos, D. me disse: “Lê isto. É a melhor coisa que leio há muito tempo”. Confiava no critério de minha amiga, que tinha me recomendado outras leituras reveladoras em um momento que parecia não encontrar nada que me inspirasse. Sua recomendação não me defraudou e nos dias seguintes, ou melhor, nas noites e madrugadas seguintes (pois era o único tempo disponível para ler que nesse momento me deixava um trabalho burocrático tedioso e extenuante em um escuro ministério colombiano) li como em êxtase Os detetives selvagens. A partir desse momento, continuei procurando e lendo com ansiedade os demais livros publicados de Bolaño. Nenhum deles me pareceu tão bom quanto esse, até ler sua obra póstuma inconclusa 2666, publicada em 2004. Em uma entrevista realizada poucos meses antes de sua morte para a edição mexicana da Revista Playboy, Bolaño diz que se não fosse escritor, seria detetive de homicídios para voltar sozinho, à noite, à cena do crime, e não se assustar com os fantasmas. Pois bem, acredito que em 2666, ele volta ao lugar do crime e finalmente se enfrenta com os fantasmas. Eu diria com dois tipos de fantasma: aqueles que rodeiam a vida do escritor e a solidão do ato da escrita, e aqueles que estão do lado do mal e a violência (e que talvez possam ser os mesmos, como fica sugerido em várias de suas obras).   O primeiro tipo de fantasma aparece na história do escritor de culto alemão Benno von Archimboldi que ocupa, basicamente, a primeira – A parte dos críticos – e a última parte do romance. Na história de apertura, quatro críticos literários europeus tornam-se amigos ao estudar a obra do misterioso escritor que, apesar do reconhecimento da crítica e de ter sido indicado várias vezes ao Premio Nobel, nunca tem aparecido em público e ninguém conhece detalhes de sua biografia. Na história dos críticos, Bolaño descreve as tensões que constituem o campo literário, não desde a perspectiva dos escritores e poetas marginais como fez n’Os Detetives Selvagens, mas dos estudiosos da literatura, com suas brigas, e conspirações intelectuais, embora destacando a amizade e o amor que surge entre eles. De certo modo, essa primeira parte pode ser lida também como uma história de amor (não um triângulo, mas um quadrado amoroso com final inesperado).  A parte de Archimboldi, última do texto, está construída como um romance de formação e narra a história de vida do escritor alemão Hans Reiter (que usa o pseudônimo de Benno von Archimboldi), nascido em 1920. Como em outros de seus romances e contos, Bolaño constrói a figura do escritor como um ser marginal, errante e melancólico, afastado dos centros de poder do campo literário e político. Na visão de Bolaño, o verdadeiro escritor estaria próximo de algo que foge ao literário. Talvez por isso, na história de Reiter, parece que a experiência (sobretudo sua participação na Segunda Guerra) é definitiva para seu futuro como escritor. Essa parte do romance está atravessada por questões literárias: de onde vem o impulso da escrita? vale mais a leitura ou a experiência para escrever uma obra prima? qual deve ser o lugar do escritor e suas relações com editores e leitores? A história do escritor alemão e a história dos críticos têm seu ponto de encontro na cidade imaginária de Santa Teresa (nome fictício de Cidade Juarez, localizada na fronteira entre o México e os Estados Unidos, marcada tragicamente pelos milhares de assassinatos de mulheres que vem acontecendo desde 1993). Os críticos viajam a Santa Teresa ao serem informados que possivelmente ali se encontra Archimboldi. O escritor Alemão viaja para encontrar seu sobrinho, acusado de ser o autor ou pelo menos de participar naqueles crimes. No ar estranho da cidade e do deserto que a rodeia, confluem os fantasmas da violência retratada por Bolaño com uma técnica hiper-detalhista que simula os informes forenses para descrever, em cadeia, os corpos das mulheres assassinadas. A parte dos crimes é a mais extensa e a mais arrepiante do romance pela acumulação de mortes e pela aparente ausência de explicação e de sentido de tanta violência. Machismo, narcotráfico, pornografia snuff, são algumas das possíveis causas dos crimes, mas nenhuma delas consegue explicá-los por completo. O que flutua como uma sombra em toda a narrativa é precisamente a pergunta sobre a origem e a causalidade ou casualidade do mal (tema caro a Bolaño e que aparece desde seus primeiros textos). Essa parte pode ser lida como um romance policial, inclusive com participação de um detetive americano com aparência de Sherlock Holmes. Mas, em 2666, os crimes são impossíveis de resolver deixando uma sensação final de impotência e desolação. Duas histórias, centradas em Santa Teresa, completam as cinco partes do romance: a do professor de filosofia chileno Amalfitano (que compartilha com Bolaño alguns rasgos biográficos); e a história do jornalista americano Oscar Fate. O professor chileno é um personagem perdido, exilado e próximo à loucura. Em sua cabeça confluem em forma delirante a filosofia e a história política do século XX. Escuta vozes permanentemente e em suas noites de insônia realiza estranhas performances no pátio de sua casa inspirado em instalações de Marcel Duchamp. Apesar do humor e a ironia presente na história de Amalfitano, o que predomina é um clima de tristeza, melancolia e medo, pois ele teme, o tempo todo, pela vida de sua filha em Santa Teresa. Cada parte do romance parece nos levar por questões centrais da História do século XX, formando um grande painel histórico-ficcional. No caso do jornalista Oscar Fate, entramos na história da fundação do partido das Black Panters através da voz de Barry Seaman, um de seus fundadores. No meio da reportagem sobre Seaman, Fate é obrigado por sua revista a cobrir uma luta de boxe em Santa Teresa e quase por azar, fica envolvido com a investigação dos crimes. Embora existam pontos de contato entre todas as histórias, cada parte do romance pode ser lida de forma independente (e Bolaño queria que fosse assim, publicadas com intervalos de um ano para assegurar o futuro econômico de sua família). Porém, em conjunto, constituem uma das empresas mais impressionantes da narrativa contemporânea, uma imersão profunda pelos labirintos da criação literária e uma aproximação, nada modesta, ao mal absoluto. Em 2666 confluem todas as obsessões bolanianas: a relação entre literatura e vida, a pergunta pela origem do mal e da violência, a proximidade entre literatura e perversão. Escrito com uma prosa direta e objetiva, através da acumulação de histórias e digressões, e apesar de suas 848 páginas (na versão em português), Bolaño consegue prender ao leitor como só os grandes mestres da narrativa conseguem.

*Publicado no Jornal do Brasil em 5 de maio de 2010.

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