Em El mago de Viena (2005), Sergio Pitol escreve: “Se de algo posso estar seguro é que a literatura e somente a literatura tem sido o fio que deu unidade a minha vida. Penso agora a meus setenta anos que vivi para ler; como uma derivação desse exercicio permanente cheguei a ser escritor”. Seus livros, El arte de la fuga (1996), El viaje (2000) e El mago de Viena, agora reunidos na Trilogia da memória (2007) dão testemunho dessa intensa relação entre vida e literatura.
Em conjunto os três livros formam uma espécie de autobiografia literária, mas um tipo de autobiografia construída seguindo os rastros da leitura e da escritura. Não há nela detalhe pessoal que não se relacione com a própria literatura. O que vemos nestes textos é o Pitol como escritor/leitor/tradutor e muito pouco sabemos sobre ele quando sua vida não está diretamente relacionada com o literário. São mencionados sutilmente alguns dados biográficos: seus estudos de leis, a morte de seus pais, seu trabalho como tradutor e revisor para algumas editoriais espanholas e latino-americanas, seu desejo inicial de tornar-se editor antes que escritor. Mas, não se trata de uma autobiografia que exponha a parte íntima e privada de sua vida e sua história. A biografia se projeta a partir de sua obra e é só deste modo que podemos saber alguns detalhes íntimos do escritor.
Especialmente em El arte de la fuga e El mago de Viena existe um movimento pendular entre crítica e autobiografia. No primeiro livro ainda há uma clara diferenciação entre os capítulos agrupados em três grandes categorias: Memória, Escritura, Leituras. El mago de Viena está formado por uma constelação de fragmentos sem separações por capítulos, onde o registro narrativo passa diretamente do ensaio literário, para lembranças de sua vida, para pequenos relatos de viagens, para apartes do diário, comentários políticos ou anotações sobre sua arte poética, configurando um livro híbrido que transita por vários gêneros.
Esta nova forma narrativa – diferente de seus romances anteriores – poderia estar relacionada com uma nova etapa de sua vida. Pitol volta ao México e se instala em sua casa de campo em Xalapa. O mundo movimentado e intenso da diplomacia é substituído pela solidão, a tranqüilidade e os passeios diários no campo (longas caminhadas como as de Sebald ou Walser, que fazem pensar na necessidade de estudar as relações entre os hábitos cotidianos do escritor e suas formas narrativas). Ao trocar o espaço da diplomacia, rico em atmosferas e personagens para seus romances, pela solidão de sua casa de campo, é o próprio Pitol que se torna o personagem central de sua escrita. Inclusive, é nesse momento que abandona seus diários, os quais mantinha há 35 anos e dos que se alimentaram seus romances, porque, segundo ele, o diálogo indispensável do diário se desloca agora para esses novos textos de corte autobiográfico.
A nova escrita de Pitol deixa transparecer ainda mais a influencia de Borges e de Alfonso Reyes, e a estrutura de seus livros se modifica, tornando-se fragmentária e misturando diferentes registros narrativos, indo do autobiográfico ao ensaio e a crítica ou misturando ambos em um só movimento. A fragmentação do texto corresponderia também à própria fragmentação da memória e o que Pitol destaca em outros autores ou na sua arte poética como uma corrente subterrânea que atravessa os textos, um segredo que permeia a trama, mas que permanece oculto, parece estar também no centro de sua própria autobiografia: “Sou então consciente de que ao tratar-me como sujeito ou como objeto minha escrita fica infetada por uma praga de imprecisões, equívocos, excessos ou omissões. Persistentemente me transformo em outro”.
Há uma mudança profunda nas condições de vida do escritor, e também, parece-me, uma tomada de consciência como a que referia Barthes ao falar do início da Divina Comedia de Dante, aquele “meio-do-caminho da nossa vida”, que não corresponde necessariamente a uma medida aritmética do tempo. Trata-se de um momento de mudança decisivo e, no caso do escritor, diz Barthes, “não pode haver uma Vita Nova […] que não seja a descoberta de uma nova prática de escrita”. Vários motivos podem levar a esse momento de ruptura segundo ele: a sensação de repetição e de cansaço; um acontecimento transcendental vindo do Destino (a perda da mãe, por exemplo, no caso do Proust e do próprio Barthes); e a consciência, que vem com a idade, de que a partir de determinado momento “os dias estão contados”, a evidencia de que efetivamente somos mortais. Esta ultima evidencia atravessa a Trilogia da Memória como o fio, ás vezes visível, outras vezes oculto, que une a dispersão de seus fragmentos.
Pitol fala sobre três momentos anteriores de sua narrativa, três momentos nos quais teria dado um salto nos temas e na forma literária motivado por mudanças de espaços, e novas pessoas próximas, mas também pela necessidade do escritor de não se repetir, de não cair na inércia que leva o domínio de uma técnica. Um primeiro momento, correspondente a seu livro de relatos Tiempo Cercado (1959), estaria relacionado com histórias do passado familiar, histórias que sua avó e outros membros de sua família lhe contavam. Esta etapa estaria marcada pela severidade e pelo destino trágico dos personagens. Histórias de vidas que tendiam à desintegração. Uma etapa marcada pela Revolução Mexicana e suas conseqüências sobre um mundo que chegava ao fim.
No segundo momento, Pitol se desprende da atmosfera de sua infância, sai do México e viaja pelo mundo. Livros de relatos como Los climas (1966) e No hay tal lugar (1967) e seus dois primeiros romances, El tañido de una flauta (1972) e Juegos florales (1982) trazem a marca da vitalidade e estão escritos muito próximos de sua própria experiência de vida. O mundo da criação literária e artística é central neste momento de sua narrativa.
Sua terceira etapa está escrita sob o signo da parodia e o carnavalesco. Com o Tríptico do Carnaval, que reúne três romances: El desfile del amor (1984), Domar a la divina garza (1988) e La vida conyugal (1991), Pitol se aproxima dos escritores raros e excêntricos que admira: Schowb, Schulz, Rousell, Firbank, O’Brien, Gombrowicz, Aira, Vila-Matas. O próprio Pitol se surpreende da demora em aparecer em sua narrativa esta veia humorística e paródica que foi sempre central em suas preferências como leitor. Embora os textos de Pitol não alcancem o grau de excentricidade de autores como O’Brien ou Firbank, em minha opinião são estes seus melhores romances.
A Trilogia da Memória seria mais um salto na sua obra, um salto profundo que corresponde a uma Vita Nova e que faz mudar radicalmente suas práticas de escrita. Com mais de setenta anos o escritor faz um exame de sua vida e sua obra, explora suas lembranças, tenta costurar uma possível narrativa de sua existência. O fio com que tece essa narrativa não é outro que a própria literatura, suas leituras, seu processo criativo, as estruturas e motivos de seus contos e romances. Mas, o embate entre o desejo narcisista de escrever sobre si mesmo e o reconhecimento da impossibilidade de uma verdadeira autobiografia faz com que uma nova forma narrativa se lhe imponha. Assim como Pitol se vê como alguém que não tem o controle total de sua vida e seu destino, assim também para ele a forma literária ou artística aparece como algo externo a própria vontade do escritor, algo imposto desde fora. Seguindo esta idéia, no escritor deveria primar sempre o instinto sobre qualquer outra mediação: “Um escritor […] não procura a forma senão que se abre a ela, a espera, a aceita, embora pareça combatê-la. Mas a forma sempre deve vencer. Quando não é assim o texto está podre”.
Essa nova forma que Pitol aceita é uma mistura entre narração, crítica e autobiografia que desloca o conforto da autobiografia tradicional onde o autor acreditava ser o garante da verdade. Como em seus melhores romances e contos, a história do personagem Pitol da Trilogia da Memória termina sendo uma história conjetural e com final aberto.
Consciente dos perigos de falar de si mesmo e cultor do desaparecimento e a invisibilidade – como seus admirados Walser e Vila-Matas – Pitol faz com que o ensaio, a crítica e o relato de viagem tomem a forma de sua autobiografia.
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